domingo, 21 de setembro de 2014

O carnaval e a mercantilização da mulher negra no Brasil


                                    
                                                 Sheron-Menezzes - O carnaval e a mercantilização da mulher negra no Brasil



















Em 2014, o carnaval caiu no mês de março, mesmo período em que celebramos o Dia Internacional da Mulher. Deveria ser um período de dupla comemoração, no qual festejamos a cultura popular e descansamos um pouco da vida dura e da exploração que sofremos todos os dias; e também comemoramos o nosso dia e as conquistas até hoje conseguidas por todas nós, mulheres, assim como nos expressamos contra as injustiças sofridas por mulheres em todo o mundo.
Porém, não é este o papel atribuído às mulheres pelos grandes meios de comunicação e pelas agremiações carnavalescas. O carnaval no Brasil (que já foi o principal espaço da população pobre e negra, oprimida, para expressar sua cultura muitas vezes discriminada), a começar pelo Rio de Janeiro, e posteriormente expandido para outros estados, se tornou um mercado bilionário, que envolve empresas de turismo, redes hoteleiras, escolas de samba, canais de televisão, o comércio de bebidas, a prostituição, o tráfico de drogas. O principal símbolo desse período, ostensivamente explorado pela mídia burguesa, é a chamada “passista” ou as “mulatas do carnaval”, cuja maior representante é a “Globeleza”.
Tudo isso faz parte do projeto de marketing internacional implementado pela Embratur (Empresa Brasileira de Turismo) e pelo Ministério do Turismo. A Embratur foi criada no ano de 1966, durante a Ditadura Militar, sob o comando do então presidente- ditador Castelo Branco, com o objetivo de promover o turismo no Brasil. Naquele período, o país vivia um momento de intensa luta política, com a imposição de uma ditadura que oprimia a população política e economicamente, mas que também contava com uma forte resistência popular. Era necessária a criação de uma imagem internacional do país que escondesse seus problemas políticos, as torturas e a indignação da população, e que permitisse que fossem atraídos turistas de todo o mundo, principalmente dos Estados Unidos e da Europa, aquecendo um mercado ainda pouco explorado no país. O governo cria, então, uma estratégia de marketing baseado no tripé “Samba-Mulata-Futebol”, tendo como plano de fundo as belezas naturais do país. Além do samba e do futebol, a “mulata” era na verdade a mulher negra e sua beleza, oferecida em propagandas e nas imagens dos desfiles das escolas de samba como mais um dos “serviços” que poderiam ser encontrados no Brasil. A partir daí, a imagem da mulher negra, sua nudez e sua dança passaram a ser exploradas ostensivamente pelos grandes meios de comunicação. A propaganda utilizada pela Embratur nos anos 70 e 80 enaltecia não só as belezas naturais, mas também a sexualidade da mulher brasileira: nos cartazes de divulgação, panfletos, filmes publicitários e na participação em congressos mundiais sobre turismo, a participação da mulata e negra brasileira era presença certa, sempre vestindo pouca ou nenhuma roupa.
O mercado que gira em torno de toda essa publicidade cresce a cada ano. Estima-se que o carnaval deste ano para o país cerca de 6,4 milhões de turistas e acrescente R$ 6,1 bilhões na economia do país, de acordo com levantamento do Ministério do Turismo. Somente no Rio de Janeiro, principal destino de turistas no carnaval, o carnaval deve movimentar cerca de R$2,2 bilhões durante a festa, e a previsão é de que 918 mil turistas visitem a cidade durante o período, um aumento de 2% em relação a 2013, ano em que foi gerada uma renda de US$ 665 milhões pelos 900 mil turistas que estiveram na “cidade maravilhosa”.
Porém, após quase 50 anos de exploração ostensiva do corpo da mulher brasileira como atrativo turístico, o perfil do turista de diversos países do mundo que vem ao Brasil é o do que procura o chamado “turismo sexual” . Em pesquisa recente, a Embratur mostra que 44% dos turistas no país viajam com a família, 34% estão sozinhos, 17% viajam com amigos e 4% em excursão (o chamado “turismo de solteiro” é considerado alto no país). A consequência direta é o aumento da prostituição (inclusive a infantil), da pedofilia e do tráfico de mulheres escravizadas. Com certeza o turismo sexual está nitidamente ligado à prostituição, atraindo turistas que querem ver mulheres, crianças e até mesmo meninos. “Talvez o termo adequado para essa prática não seja ‘turismo sexual’, visto que não há nenhum pacote de agência de viagem brasileira ou estrangeira apresentando Natal como paraíso sexual; adequaria-se melhor aqui o ‘prostiturismo’, termo que mais se aproxima do que realmente ocorre em Natal, pois o que há é uma situação em que a prostituição torna-se uma atividade mais lucrativa quando se tem por clientela os turistas estrangeiros”, reconhece Paulo Lopes, da secretaria de turismo de Natal (RN).
O êxito do turismo no Brasil sempre esteve ligado à sexualidade feminina e ao mito da orla “caliente”. Também no tráfico de mulheres somos campeões. Dados apresentados pela Fundação Helsinque mostram que o Brasil é o maior exportador de mulheres escravas sexuais da América do Sul. O tráfico de mulheres e a prostituição de milhões delas no mundo já alcançaram níveis de exploração só comparáveis aos piores momentos do comércio de escravos do século 16.
A principal fonte de mulheres para todo esse mercado é a pobreza. Mais de 30 milhões de brasileiros que não sabem ler ou escrever e mal conseguem se alimentar podem começar a achar que a prostituição é uma saída honrosa. E também não precisamos ser muito inteligentes para deduzir que a maioria das mulheres acima citadas são negras, já que são mulheres negras a maioria das mulheres pobres do país. Porém, não somente a pobreza contemporânea ajuda a construir esse quadro.
A origem do papel da mulher negra no Brasil
No “descobrimento” do Brasil, a principal e mais valiosa mercadoria para Portugal eram os escravos africanos (diferente do que dizem os livros de história oficial). Um escravo barato custava o equivalente ao que hoje nos custa um carro popular, e os mais caros custavam o equivalente a uma casa de dois quartos numa cidade média brasileira. Os homens eram escravizados no trabalho de colheita e produção e as mulheres no trabalho doméstico e na exploração sexual. Os escravos não eram considerados pessoas, mas coisas, bens, propriedades de seus senhores. Portanto, o senhor, uma vez adquirida a carta de propriedade de um escravo, poderia fazer o que quisesse com esse bem: torturavam, espancavam, matavam, tudo garantido pela lei e pelo “direito de propriedade”. Além do trabalho doméstico, às escravas foi reservada a prática do estupro: elas eram objeto sexual dos senhores, aquelas com quem eles faziam sexo por prazer (e não para crescer a família, o que faziam com as mulheres brancas). Muitos senhores estipulavam que suas jovens escravas deveriam ter a sua primeira relação sexual com eles. E como os negros eram considerados coisas e não pessoas, essas meninas (geralmente abusadas sexualmente pelos senhores pela primeira vez aos 11, 12 anos de idade) nunca podiam expressar sua opinião a respeito de nada. Não tinham escolha; se recusassem seriam espancadas e torturadas, muitas das vezes até a morte. Assim viveram as mulheres negras no Brasil durante os quase 400 anos de escravidão da população negra.
Nesse período, a mulher negra representava a camada menos valorizada da sociedade brasileira do ponto de vista social e também econômico. Os brancos eram livres, os negros escravos, propriedade de um senhor branco. Mulheres brancas deviam obediência a seus maridos (e antes de casar, ao seu pai). Mulheres negras (assim como homens negros) eram propriedade dos seus senhores; porém, eram consideradas menos que um escravo homem: elas valiam em torno de 25% menos que um escravo homem (e sendo uma mercadoria “mais barata”, suas mortes representavam uma perda menor aos senhores).
Hoje em dia a situação não é muito diferente: mulheres negras representam a base da pirâmide social do país, a população mais explorada. Segundo o Ipea (Instituto de Planejamento e Economia Aplicada), hoje no Brasil mulheres brancas recebem em média 74% do salário dos homens brancos. Os homens negros recebem 48% e mulheres negras 35% do que recebem homens brancos (comparadas populações com a mesma escolaridade). Dividido por classe, no mercado de trabalho feminino, as negras mais “pobres” recebem um salário 45% inferior ao das brancas, mesmo ocupando o mesmo cargo. As mulheres da “alta classe” convivem com uma diferença salarial de 65%. O Ipea ainda aponta que as mulheres negras estão em maior número nos piores cargos: 71% das mulheres negras estão nas ocupações precárias e informais, contra 54% das mulheres brancas e 48% dos homens brancos.
A mulher negra e a ideologia dominante
Mão-de-obra barata e objeto sexual: esse foi o papel dedicado às mulheres negras na sociedade brasileira desde o início da colonização portuguesa e da escravidão africana; esse é o papel que a sociedade capitalista vinda após a independência fez permanecer ao longo dos tempos. Esta exploração tomou novas formas e novos “senhores” passaram a lucrar com isso. Portanto, tudo isso continua na “normalidade” da nossa cultura, não nos surpreende. A Embratur e a Rede Globo (assim como os empresários do turismo e os donos de redes e casas de prostituição e pedofilia) se aproveitam da nossa triste história e tiram proveito disso, trabalhando há pelo menos cinco décadas para perpetuar essa cultura: a personagem “Globeleza” foi construída pela Globo na década de 90 como símbolo do carnaval do Brasil, e seu concurso transmitido em rede nacional no horário nobre de domingo se apresenta como um exemplo de perspectiva de vida para meninas negras dos bairros pobres do país. Moldam a perspectiva profissional dessas meninas, que passam a sonhar ser dançarinas e se casar com um “gringo”; ninguém ensina a elas que podem ser engenheiras, médicas, dentre outras profissões que dificilmente são associadas a mulheres e negros. Para conseguir empregos formais, o cabelo crespo, a cor da pele, os traços, a aparência, são mal-vindos. Mas, para sambar seminua na TV e no carnaval, todas essas características são muito bem-vindas. O caminho a ser seguido para meninas negras já está traçado: se expor nas vitrines do carnaval.
Também os homens (sejam negros ou brancos) têm tendência a ver mulheres negras como tal “objeto sexual”. Nos valorizam mais pela beleza que pela inteligência, têm dificuldades de construir uma relação além do sexual. Quem de nós nunca ouviu da boca de um homem “eu adoro uma mulata”, “por que você não desfila no carnaval?”, ou ainda “morenas são as melhores”. E nesse sentido sabemos o que “as melhores” significa.
Este carnaval, o concurso da Globeleza, o 8 de Março, devem nos fazer refletir quanto uma mulher negra deve lutar para transformar a nossa sociedade numa sociedade melhor. Nesta sociedade que explora e oprime, e que usa gênero, cor da pele, características físicas, como motivo para explorar e oprimir ainda mais, devemos ser as primeiras a se levantar e lutar. Temos mais motivos que nenhum outro para nos mobilizar e tomar a frente na luta por uma nova sociedade. Assim, ser mulher negra vai deixar de ser um problema e vai passar a ser a solução!
Eloá Nascimento e Jhenifer Raul, Rio de Janeiro

FONTE:http://averdade.org.br/2014/03/o-carnaval-e-mercantilizacao-da-mulher-negra-brasil/

Nenhum comentário:

Postar um comentário