Rio - Avenida Brigadeiro Trompowski, acesso à Ilha do Governador, às 15h de ontem. Consumindo crack sob sol de quase 40 graus, pelo menos 300 viciados protagonizavam cenas de horror na região, chocando moradores e quem transitava pela via. Transtornados com a ‘onda’ deixada pelas pedras da droga, homens e mulheres maltrapilhos, muitos deles adolescentes e até idosos, atravessavam a via entre os carros com risco de serem atropelados, ameaçavam motoristas e tentavam furtar objetos de quem se arriscava a pé pelo local. Muitos ‘tostavam’ na calçada e alguns pareciam fazer sexo debaixo de lençóis e cobertores.

“Como pode um cenário horripilante como esse na cara da polícia”, desabafou o motorista Jurandir Fraga, 46, ao parar num sinal de trânsito na Avenida Trompowski, em frente a uma sede do São Cristóvão, onde estava baseada uma patrulha do Batalhão de Policiamento de Vias Expressas (BPVE), a menos de 50 metros dos ‘zumbis’, como são chamados os viciados.
Grupos de pessoas usam crack em plena luz do dia, no acesso à Ilha do Governador | Foto: Fernando Souza / Agência O Dia
Grupos de pessoas usam crack em plena luz do dia, no acesso à Ilha do Governador | Foto: Fernando Souza / Agência O Dia
Após ocupação

Demonstrando suposta impotência diante do vizinho quadro de flagelo, policiais militares assistiam a tudo da viatura, no ar condicionado. Com o fim das maiores cracolândias do Rio, no Complexo de Manguinhos e na Favela do Jacarezinho, ocupados pela polícia desde o dia 14, dependentes do crack se espalham de forma rápida e devastadora pela cidade.

Especialistas calculam que mais de seis mil viciados estejam em cracolândias, por exemplo, nos acessos às favelas Parque União e Nova Holanda, no Complexo da Maré; nas linhas férreas e ruas de Madureira e Cascadura; na Favela do Arará, em Benfica, e Centro. A crescente presença dos ‘nóias’, como também são chamados, preocupa autoridades, moradores e o comércio desses locais.

Ontem também, o Ministério Público se manifestou contra a remoção compulsória (à revelia) de adultos para abrigos da prefeitura. O governo municipal, por sua vez, anunciou o nome da ONG Cieds como substituta da Casa Espírita Tesloo, para o tratamento de dependentes.
Foto: Fernando Souza / Agência O Dia
Usuários de crack na saída da Ilha do Governador, em frente a comunidade Parque União | Foto: Fernando Souza / Agência O Dia
Igreja recomenda ações de prevenção

O arcebispo do Rio, dom Orani João Tempesta, recomendou aos cerca de 600 padres das 264 paróquias do Rio que a Igreja Católica ‘vá ao encontro’ dos usuários de crack, reforçando suas ações de prevenção, acolhida e recuperação dos viciados. Em 18 de setembro, o assunto foi tratado na reunião do governo diocesano, com base em pesquisa encomendada pela Pastoral do Menor sobre o perfil de usuários de crack.

“A Jornada Mundial da Juventude (JMJ Rio 2013) vai atrair jornalistas do mundo inteiro. Se essa situação não mudar, o município ficará com a imagem arranhada para outros grandes eventos”, alerta o vigário episcopal para a Caridade Social, cônego Manuel Manangão.

Especialista em sociologia urbana da Uerj, Dário Sousa coordenou a pesquisa com 50 usuários de crack — 70% do sexo masculino — em cracolândias da Zona Norte. “O que nos impressionou é que a a maioria tem entre 22 e 24 anos e são pais, que estão fumando crack no lugar dos filhos, já dizimados pela droga”, comentou Dário.

Internação compulsória é ilegal, diz MP

As ações da Prefeitura do Rio no recolhimento de viciados em crack entraram na mira do Ministério Público. De acordo com o órgão, as medidas de remoção compulsória de adultos, que ganharam apoio do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, não têm qualquer fundamento legal.

Isso, ainda de acordo com o MP, foi reconhecido pelo município por intermédio de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado em 25 de maio deste ano.

Segundo o promotor Rogério Pacheco Alves, da 7ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania, o morador de rua só pode ser recolhido se for flagrado praticando algum crime ou em casos de alto risco para sua saúde.

“Não há fundamento legal para o que acontece atualmente, com moradores de rua são levados para delegacias para verificação dos antecedentes criminais, ou seja, são sarqueados. As prisões são rejeitadas pela Constituição, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal”.

Grávida não sabe quem é o pai do bebê

Magra, abatida e com uma barriga de oito meses de gravidez, C., de 40 anos, vive angustiada, perambulando há três anos pelas ruas do Centro. Ela conta que já enfrentou de tudo em cracolândias. “Fui até estuprada. Nem sei quem é o pai do meu filho”, diz.

Garantindo que agora tenta se livrar do vício do crack, ela evita andar com grupos de usuários. “Tenho medo de perder o quinto filho”, justifica. Explica que quatro foram mortos por ex-companheiros, que não queriam que ela engravidasse. “Matavam os bebês ainda na minha barriga”, revelou C., que disse ter ainda outros três filhos. “Estão por aí”, murmurou.